sexta-feira, maio 16, 2008

Ler jornais é saber mais ou menos o mesmo

Metade do que se escreve sobre mim na imprensa é mentira; a outra metade é deprimente. Os jornalistas perguntam-me muitas vezes se costumo ter problemas com as pessoas, na rua. Se me incomodam, se me causam transtornos de qualquer espécie. A verdade, porém, é que só tenho problemas com jornalistas. O público tem a grande sensatez de não me ligar nenhuma.
O elemento principal no conflito que me opõe aos jornalistas é este: eles levam a mal que a minha vida seja ligeiramente menos excitante que a da Elizabeth Taylor. E tomam em mãos a tarefa de acrescentar sofisticação à minha triste existência. Creio que tudo começou há três ou quatro anos, quando certa jornalista quis escrever uma peça sobre os meus luxos e excentricidades. Constatando que não existiam, viu-se forçada a inventar alguns. Foi, no entanto, uma invenção fortemente alicerçada nos factos. A senhora telefonou para o Jornal de Letras na esperança de descobrir se a vocação para o requinte tinha começado no meu primeiro local de trabalho. Era, convenhamos, o sítio ideal para procurar. Se há glamour, é no Jornal de Letras. As festas espampanantes, o convívio permanente com estrelas internacionais e as noitadas de sexo e álcool fazem da publicação a Vogue portuguesa. Sucede que, por azar, naquela semana o JL celebrava um aniversário, e eu tinha enviado aos meus antigos camaradas de redacção um desses cestos que se encomendam na net e que têm flores, chocolates e vinho espumoso. «De que marca é o champanhe?», perguntou a jornalista. Parece que era francês. E assim nasceu o mito da minha grande afeição por champanhe francês. Se eu bebo champanhe duas vezes por ano, é muito. E não faço questão de lhe investigar a nacionalidade. Mas, depois daquele artigo, não há nenhuma nota que se escreva sobre mim na imprensa que não contenha a referência ao facto de eu ser um refinado apreciador de champanhe – e do francês.
Outro jornal, há uns meses, publicou uma detalhada reportagem sobre as minhas «férias de luxo» (quase tudo o que eu faço é, para a imprensa, «de luxo». «Ricardo Araújo Pereira foi à mercearia comprar dois quilos de batatas de luxo», é uma hipótese de título). Eu teria estado na Tailândia, que nem um nababo, em duas praias magníficas. Na verdade, em 34 anos de vida, nunca fui para oriente de Istambul. E naquele ano, se não estou em erro, tinha passado as férias em casa. É claro que a publicação de mentiras sobre mim me incomoda. Mas confesso que o que me indigna acima de tudo é o facto de a vida que os jornalistas inventam para mim ser melhor do que aquela que eu, na realidade, vou levando.
Mais recentemente, outra jornalista foi acompanhar um dia de gravações do Gato Fedorento. Sendo, como sou, um carroceiro (característica da minha personalidade que a imprensa nunca refere, porque é difícil de conciliar com a de apreciador de champanhe), em determinada altura fiz uma piada obscena que implicava designar certa parte do meu corpo por «os tintins». A jornalista foi para a redacção e escreveu dois ou três sólidos parágrafos sobre o meu apreço por banda desenhada em geral e pela obra de Hergé em particular. E é assim que, hoje em dia, sempre que sou convidado para ir falar a uma escola, por exemplo, os miúdos me recebem invariavelmente com um livro do Tintim, para a minha colecção. «Esperamos que ainda não tenha este», dizem eles. Como não tenho nenhum, acertam sempre.
Para dizer a verdade, nada disto me afecta especialmente. Há já muito tempo que não leio nada do que se escreve sobre mim. E não é pelas imprecisões constantes, nem sequer por sobranceria relativamente à opinião dos outros. É o tema que não me interessa.
Retirado de www.visao.pt de Ricardo Araújo Pereira

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