terça-feira, abril 22, 2008

No meu tempo não era assim

Quando este texto for publicado, o leitor já viu várias vezes o vídeo em que uma aluna da escola Carolina Michaëlis dá início a um motim porque a professora de Francês teve a ousadia de lhe confiscar o telemóvel. (Se não viu o filme, digo-lhe que impressiona. Sobretudo porque, enquanto a generalidade dos cidadãos é assaltada na rua, a esta senhora o gang apareceu-lhe no local de trabalho.) Também calculo que já terá tido oportunidade de ouvir várias pessoas a garantirem-lhe que isto, no tempo delas, não era assim. Eu nunca perco uma oportunidade de me juntar a um coro de moralistas (que, normalmente, têm uma afinação irrepreensível), e por isso estou aqui para dizer o mesmo: isto, no meu tempo, não era assim.
Era pior. Sobretudo porque não havia telemóveis. Privados da possibilidade de filmar os seus actos de indisciplina, os alunos do meu tempo tinham muito mais dificuldade em tomar consciência da sua própria idiotia. O filme da escola Carolina Michaëlis tem essa virtude: mostra a idiotice em toda a sua nudez. Um regalo para os meus olhos, que aprecio muito idiotice – e nudez ainda mais. Acredito sinceramente que, depois de verem a figura que fizeram, tanto a protagonista do filme como o magnífico cineasta que captou a acção, lançando a todo o passo estupendas indicações de cena, não voltarão a comportar-se assim. No meu tempo, teríamos continuado. Um alarve que toma consciência de ser alarve insiste na alarvidade? Não creio. E se um alarve cair no meio de uma floresta e não estiver lá ninguém para ouvir, faz barulho? Julgo que sim, e confesso que até espero que se aleije com alguma gravidade na queda.
A verdade é que, se há coisa que nunca muda em toda a História da Humanidade é esta: os adolescentes são parvos em todo o lado. Todos os senhores respeitáveis já foram, numa altura ou noutra, adolescentes parvos. Jorge de Sena começa um livro autobiográfico dando conta da «indisciplina ruidosa» que eram as suas aulas de Filosofi a. Que, notem, decorreram no tempo dele. Tempo esse que é bem anterior ao tempo dos que agora dizem que no seu tempo isto não era assim. Está baralhado com isto dos tempos? Siga para o próximo parágrafo, que é já o penúltimo.
É por isso que a culpa do que sucedeu na escola Carolina Michaëlis, a ser de alguém, é da professora. Ser professor de liceu é das actividades mais insolentemente arrogantes a que alguém se pode dedicar: trata-se de pretender ensinar coisas a quem já sabe tudo. Eu, pelo menos, sabia tudo aos 15 anos. A própria Carolina Michaëlis, que era tão boa senhora, sabia com certeza muito mais aos 15 anos do que quando foi ensinar para a Universidade de Coimbra. Toda a gente sabe tudo aos 15 anos. Só com o passar do tempo se vai descobrindo, com razoável sobressalto, que não se sabe quase nada. Mas há duas ou três pessoas que nunca aprendem o seguinte: o tempo delas, apesar de contar com a sua inestimável presença, não é especial em nada. No meu tempo, aliás, toda a gente sabia isto.
Nota: Não conheço bem as recentes propostas do Ministério da Educação e por isso não sei se, actualmente, posso pronunciar-me acerca de um professor sem o avaliar. Aqui fica, então, a minha avaliação da professora de Francês da escola Carolina Michaëlis, baseando-me apenas nas imagens do vídeo:

Resistência: 17

Capacidade de sofrimento: 19
Equilíbrio: 16
Persistência: 18


Retirado de http://www.visão.pt/ de Ricardo Araújo Pereira

sábado, abril 05, 2008

Filme August Rush - O Som do Coração

August Rush (Freddie Highmore) é um rapaz que consegue ouvir música em qualquer parte, seja no ruído do vento a trespassar a relva ou no roncar do metro. Aos seus ouvidos, todos os sons constituem uma intensa sinfonia. Evan Taylor, de seu nome verdadeiro, acredita piamente que através da música vai conseguir encontrar os seus pais e que estes o amam e procuram com tanto ardor quanto ele. Ele nunca os conheceu, nem tem qualquer informação sobre eles, mas tem uma fé inabalável.Ele ainda não sabe mas a música corre-lhe mesmo nas veias. Tal como nos é contado inicialmente, o seu pai, Louis Connelly (Jonathan Rhys Meyers), um cantor de rock irlandês, e a sua mãe, Lyla Novacek (Keri Russell), uma violoncelista clássica americana. Os dois apaixonaram-se à primeira vista e conceberam-no num terraço com vista para Washington Square, durante uma noite inesquecível. Os dois não tardaram a separar-se, com a "ajuda" do pai de Lyla (William Sadler).Vários meses depois, ela é atropelada e dá à luz prematuramente. Num dos vários twists absurdos do filme, o pai falsifica a assinatura de Lyla, dá o bebé para adopção, e diz-lhe que a criança morreu ao nascer. Desencantados, Louis e Lyla vão desinvestindo das suas carreiras.Entretanto, Evan abandona o orfanato onde viveu nos últimos 12 anos, em New Jersey e viaja até Nova Iorque, na esperança de aí encontrar a sua família. Na cidade, trava conhecimento com um menino de rua que toca guitarra em troca de um punhado de moedas e decide juntar-se a ele. É assim que encontra uma dúzia de crianças que vivem num abrigo improvisado num teatro abandonado, sob a protecção de um Mago enigmático (Robin Williams).Nessa noite, ele pega na viola e faz um brilharete como se dominasse o instrumento há anos. O Mago fica impressionado com o seu talento e treina-o para ser um verdadeiro artista. Claro que, em troca, vai recolhendo os louros deste pequeno grande músico de rua.A carreira deste prodígio musical segue em crescendo e este acredita que, através de cada nota, consegue chamar os seus pais. Passados seis meses, "August Rush" já está a dirigir uma orquestra que interpreta um original seu num auditório em pleno Central Park.O facto é que também eles o procuram. Depois de saber que o seu filho está vivo, Lyla tenta localizá-lo com a ajuda de um reconhecido assistente social, Richard Jeffries (Terrence Howard). Louis começa a ser assombrado pelas lembranças do seu único e verdadeiro amor e volta a dedicar-se à sua música, enquanto se encaminha para o lugar onde eles se encontraram...Este conto de fadas contemporâneo foi realizado por Kirsten Sheridan - filha de Jim Sheridan e argumentista de "Na América" (2003) - e nomeado para o Óscar de Melhor Canção, graças a "Raise it Up".
Trailer


quarta-feira, abril 02, 2008

IKEA - Puzzle para adultos

"Os problemas dos clientes do IKEA começam no nome da loja. Diz-se «Iqueia» ou «I quê à»? E é «o» IKEA ou «a» IKEA»? São ambiguidades que me deixam indisposto. Não saber a pronúncia correcta do nome da loja em que me encontro inquieta-me. E desconhecer o género a que pertence gera em mim uma insegurança que me inferioriza perante os funcionários. Receio que eles percebam, pelo meu comportamento, que julgo estar no «I quê à», quando, para eles, é evidente que estou na «Iqueia».
As dificuldades, porém, não são apenas semânticas mas também conceptuais. Toda a gente está convencida de que o IKEA vende móveis baratos, o que não é exactamente verdadeiro. O IKEA vende pilhas de tábuas e molhos de parafusos que, se tudo correr bem e Deus ajudar, depois de algum esforço hão-de transformar-se em móveis baratos. É uma espécie de Lego para adultos. Não digo que os móveis do IKEA não sejam baratos. O que digo é que não são móveis. Na altura em que os compramos, são um puzzle. A questão, portanto, é saber se o IKEA vende móveis baratos ou puzzles caros. Há dias, comprei no IKEA um móvel chamado Besta. Achei que combinava bem com a minha personalidade. Todo o material de que eu precisava e que tinha de levar até à caixa de pagamento pesava seiscentos quilos. Percebi melhor o nome do móvel. É preciso vir ao IKEA com uma besta de carga para carregar a tralha toda até à registadora. Este é um dos meus conselhos aos clientes do IKEA: não vá para lá sem duas ou três mulas. Eu alombei com a meia tonelada. O que poupei nos móveis, gastei no ortopedista. Neste momento, tenho doze estantes e três hérnias.
É claro que há aspectos positivos: as tábuas já vêm cortadas, o que é melhor do que nada. O IKEA não obriga os clientes a irem para a floresta cortar as árvores, embora por vezes se sinta que não faltará muito para que isso aconteça. Num futuro próximo, é possível que, ao comprar um móvel, o cliente receba um machado, um serrote e um mapa de determinado bosque na Suécia onde o IKEA tem dois ou três carvalhos debaixo de olho que considera terem potencial para se transformarem numa mesa-de-cabeceira engraçada.
Por outro lado, há problemas de solução difícil. Os móveis que comprei chegaram a casa em duas vezes. A equipa que trouxe a primeira parte já não estava lá para montar a segunda, e a equipa que trouxe a segunda recusou-se a mexer no trabalho que tinha sido iniciado pela primeira. Resultado: o cliente pagou dois transportes e duas montagens e ficou com um móvel incompleto. Se fosse um cliente qualquer, eu não me importaria. Mas como sou eu, aborrece--me um bocadinho. Numa loja que vende tudo às peças (que, por acaso, até encaixam bem umas nas outras) acaba por ser irónico que o serviço de transporte não encaixe bem no serviço de montagem. Idiossincrasias do comércio moderno.
Que fazer, então? Cada cliente terá o seu modo de reagir. O meu é este: para a próxima, pago com um cheque todo cortado aos bocadinhos e junto um rolo de fita gomada e um livro de instruções. Entrego metade dos confetti num dia e a outra metade no outro. E os suecos que montem tudo, se quiserem receber".
Retirado de www.visao.pt de Ricardo Araújo Pereira