quinta-feira, julho 03, 2008

Caos é sempre que um camionista quiser

Talvez um dos sinais mais importantes para perceber o nosso tempo (isto supondo, claro, que é possível perceber o nosso tempo) seja o facto de o Oráculo de Delfos ter perdido toda a sua popularidade para o Oráculo de Bellini. A diferença essencial entre os dois é que o segundo leva 75 euros à hora. De resto, o primeiro recomendava «Conhece-te a ti mesmo», o que, pelo menos no meu caso, constitui um péssimo conselho. Conheço-me apenas de vista, e já é bom. Um conhecimento profundo obrigaria a uma convivência mais intensa, e eu não me dou com gente desta. Sei apenas que dificilmente mereço fazer parte daquilo a que se chama Humanidade. Enquanto grupo, percorremos um longo caminho, desde o macaco até àquilo que somos hoje, mas eu não há maneira de o esconder continuo inquietantemente próximo do macaco.
A Humanidade foi à Lua, é certo, mas eu não sei como. Às vezes tenho dificuldade em ir à Brandoa sem parar para pedir indicações. Parece que fizemos a fusão do átomo, mas eu, pessoalmente, nem sei reconhecer um átomo se o vir na rua, quanto mais fundi-lo. Em contraponto, descasco maravilhosamente amendoins. Sou competente a catar piolhos. Aprecio uma banana de vez em quando. Não me digam que não continuo mais próximo do macaco do que do homem moderno.
A minha sorte é que o mundo não é do homem moderno. O mundo, percebemo- -lo esta semana, está nas mãos dos camionistas. A mesma sociedade que coloca uma sonda em Marte paralisa se os camionistas se chateiam. A era da tecnologia, da Internet, dos arranha-céus e da conquista do espaço não pode nada contra os profissionais da camionagem. A Humanidade descobriu vacinas para quase todas as doenças, mas os camionistas conduzem veículos que são mesmo muito pesados. A Humanidade inventa máquinas, constrói pontes e escreve poesia, mas os camionistas atiram pedras e aquilo aleija. A Humanidade não tem hipótese nenhuma contra os camionistas.
Parece claro que o homem mais poderoso de Portugal não é José Sócrates, nem Belmiro de Azevedo, nem Manuel Luís Goucha (embora eu não seja daqueles que negligenciam o poder do programa Você na TV). O homem mais poderoso de Portugal é o Cajó, que conduz um Scania de 12 rodados. Se ele convencer os amigos a não trabalharem durante 15 dias, acaba a comida, a água e a gasolina. A nossa civilização está a uma semana de distância do estado de sítio. Se o Cajó acordar maldisposto, isto descamba.

Boca do Inferno – Ricardo Araújo Pereira Quinta-feira, 3 de Julho de 2008 in visão

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